Daubert no Sul: reflexões sobre o uso de expertise pelo Supremo Tribunal Federal

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Republished: 2nd February 2021

Rafael Monnerat

Graduando em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador do Grupo de pesquisa sobre Epistemologia aplicada a Tribunais (GREAT). E-mail para contato: rmonnerat31@gmail.com

Tribunais e políticas públicas: a relação esquecida

Desde a terceira onda de democratização tribunais assumiram um papel importante na configuração de políticas públicas na América Latina, ora mediando conflitos entre poderes, ora reiterando direitos constitucionais reclamados1. Com efeito, em todo o continente diversas decisões judiciais acarretaram vetos, reformas ou até mesmo o surgimento de políticas públicas com implicações políticas e orçamentárias significativas2. O cenário brasileiro é particularmente interessante para análises já que o Supremo Tribunal Federal (STF) recentemente se tornou um dos protagonistas da política brasileira.

O protagonismo do STF na política brasileira contemporânea pode ser explicado sobretudo por fatores estruturais ligados a arquitetura institucional da Constituição de 883. Em resumo, o Supremo Tribunal Federal acumula as funções de 1) mais alta instância do judiciário brasileiro e de 2) corte constitucional, o que lhe garante uma ampla jurisdição sobre casos que repercutem nas mais diversas políticas públicas brasileiras.

No que concerne à primeira função, há recursos interpostos por indivíduos que alcançam a Corte e cujas decisões afetam milhares de casos similares, consequentemente afetando as políticas públicas ligadas a tais casos. Por exemplo, diversas disputas entre indivíduos e administração pública com relação ao fornecimento de medicamentos e tratamentos de alto custo pelo Sistema Único de Saúde (SUS) foram resolvidas definitivamente no STF. Quanto à segunda função, existem mecanismos para que diversos atores questionem no STF a constitucionalidade de determinadas leis ou atos normativos da administração pública, que podem resultar em ratificações, vetos ou reformas de medidas do Executivo ou Legislativo. A título de exemplo poderíamos citar o julgamento da constitucionalidade do sistema de cotas raciais para ingresso em universidades públicas. Em suma, o desenho institucional de 88 tornou a Corte um dos principais atores no sistema político brasileiro.

Se a relevância política do Supremo Tribunal Federal no regime democrático brasileiro é inquestionável, é preciso se perguntar como a corte se informa para tomar suas decisões. De maneira geral, o STF tem a seu dispor alguns instrumentos institucionais para obter informações especializadas tais como um corpo de assessores a serviço de cada juiz, a convocação de audiências públicas e a admissão de amicus curiae. Desses três instrumentos apenas um, a convocação das audiências públicas, é explicitamente concebido para obtenção de informação especializada. Apesar disso, uso das audiências públicas pela Corte revela um problema central do assessoramento científico do poder judiciário brasileiro: a falta de critérios para averiguar a qualidade da informação que chega aos tribunais.

STF e o uso de expertise das audiências públicas

Segundo Jasanoff4 parte da literatura sobre a relação entre tribunais e ciência pode ser classificada em três grupos: 1) crise, 2) deferência e 3) coprodução. No primeiro grupo estariam as obras que denunciam um mau uso das evidências científicas por juízes pouco versados no funcionamento da ciência e enfatizam como as características das disputas judiciais (interesses subjacentes, litigiosidade etc.) incentivam a produção de ciência de má qualidade. Já o segundo grupo reúne respostas às críticas do primeiro grupo, discutindo sugestões de standards probatórios que possam ser utilizados pelos tribunais para que esses acatem apenas a “ciência de qualidade”. Esse segundo grupo culminaria na construção do standard Daubert, utilizado pela Suprema Corte dos Estados Unidos para avaliar a cientificidade de evidências oferecidas em seus processos. No entanto, como sinaliza Jasanoff o segundo grupo frequentemente descrevia a ciência de modo caricato e pouco crítico, servindo mais como uma forma de legitimar a discricionariedade judicial. Por fim, o terceiro grupo, do qual Jasanoff é uma expoente, analisaria as relações entre tribunais e ciência sob uma perspectiva epistemológica construtivista, examinando como as decisões de tribunais com relação a ciência constroem e reforçam entendimentos sobre o que constitui ciência e evidências confiáveis.

Contudo, a abordagem da coprodução, apesar de interessante em termos explicativos ainda não resultou na construção de standards probatórios menos problemáticos que Daubert. Se tribunais como o STF enfrentam problemas complexos e multifacetados5 envolvendo informações especializadas de diferentes campos, incertezas e valorações jurídicas e políticas, é necessário que tenham ferramentas para acolher conhecimentos especializados de maneira informada e democrática. Os exemplos das audiências públicas no Supremo Tribunal Federal revelam como a inexistência de uma doutrina/ standard sobre a expertise reforçam o arbítrio judicial.

As audiências públicas (APs) foram criadas com intuito de suprir déficits democráticos e epistêmicos do STF. As APs consistem em uma sessão pública da corte para consulta e diálogo de especialistas, membros da sociedade civil, membros do governo, entre outros. Contudo, estudos empíricos sinalizam problemas não somente na discussão e deliberação das audiências, como também na utilização das informações pelos magistrados. Primeiramente, estudos indicam que o incremento deliberativo é bastante contido, visto que as sessões frequentemente consistem em uma sucessão de exposições, sem que haja diálogo, réplicas ou questionamento entre expositores6. De fato, há mesmo casos em que os magistrados suprimem a possibilidade de diálogo e questionamento de expositores, como mostra uma citação do ministro Marco Aurélio de Mello:

“Não podemos partir para um debate propriamente dito. A oportunidade não é essa. [...] Pediria, também, em um apelo ao Doutor Luís Roberto Barroso, que evite colocações que possam sugerir o debate, a réplica, a tréplica e, portanto, a projeção no tempo destes trabalhos”7

Em segundo lugar, estudos sistemáticos e de caso indicam que o uso dos argumentos de experts oferecidos nas audiências é pouco crítico e não raramente falacioso. Uma análise das citações das audiências públicas nos votos dos juízes mostrou que em 57% das citações os juízes concordavam com as afirmações dos especialistas8. Este dado indica um uso predominantemente corroborativo da informação apresentada nas audiências, em que juízes apenas citem as informações que corroborem suas hipóteses anteriores. Além disso, estudos de casos demonstram como a argumentação dos juízes frequentemente corresponde ao uso falacioso do argumento de expert9. Em suma, ainda que concebidas como um mecanismo de democratização e incremento informacional, as audiências públicas estão longe de cumprir seu objetivo, seja porque seus procedimentos se afastam de padrões razoáveis de deliberação, seja porque o uso da informação por juízes não é submetido a nenhum tipo de regra. Ambos os casos apontam como uma doutrina/ standard que trate da expertise poderia ser benéfico ao STF e, de maneira geral, aos tribunais brasileiros.

Daubert no sul: conciliando ideais democráticos e epistêmicos no STF

Como mencionado anteriormente, o standard Daubert criado pela Suprema Corte dos Estados Unidos para avaliação de cientificidade de evidências apresentadas em tribunais foi criticado por ser um disfarce para a discricionariedade judicial e reiterar descrições acríticas e caricatas da ciência. De fato, é preciso guardar em mente que a criação de um novo standard ou doutrina sobre a expertise para os tribunais brasileiros e latino-americanos deve levar em conta como conciliar ideais democráticos e epistêmicos. Os estudos sobre as audiências públicas do STF demonstram como um standard ou doutrina da expertise que diminua o arbítrio dos juízes e incremente as informações das decisões jurídicas não pode se resumir apenas a uma avaliação da confiabilidade/cientificidade das evidências oferecidas, mas também orientar sobre condições de diálogo e usos razoáveis dos argumentos de expert.

 

References

1 GONZALEZ-OCANTOS, Ezequiel, Courts in Latin American Politics, in: GONZALEZ-OCANTOS, Ezequiel (Ed.), Oxford Research Encyclopedia of Politics, [s.l.]: Oxford University Press, 2019.

2 ARGUELHES, Diego Werneck et al, Criatura e/ou Criador:transformações do Supremo Tribunal Federal sob a Constituição de 1988, Revista Direito GV, v. 12, n. 2, p. 405–440, 2016; TAYLOR, Matthew M., O judiciário e as políticas públicas no Brasil, Dados, v. 50, n. 2, p. 229–257, 2007; DA ROS, LUCIANO. Em que ponto estamos? Agendas de pesquisa sobre o Supremo Tribunal Federal no Brasil e nos Estados Unidos. In: ENGELMANN, Fabiano (Org.), Sociologia política das instituições judiciais, Porto Alegre: Editora UFRGS/ CEGOV, 2017.

3 Ibid.

4 JASANOFF, Sheila. "Making Order: Law and Science in Action. In (Eds): HACKETT, Edward J.; AMSTERDAMSKA, Olga; LYNCH, Michael; WAJCMAN, Judy. The Handbook of Science and Technology Studies, Third Edition. MIT Press, 2007, 761-7

5 TURNER, Stephen, Political Epistemology, Experts, and the Aggregation of Knowledge, Spontaneous Generations: A Journal for the History and Philosophy of Science, v. 1, n. 1, p. 36, 2007; TURNER, Stephen P., Liberal democracy 3.0: civil society in an age of experts, London: SAGE, 2003; TURNER, Stephen, What is the Problem with Experts?, Social Studies of Science, v. 31, n. 1, p. 123–149, 2001.

6 SOMBRA, Thiago Luís Santos, Supremo Tribunal Federal representativo? O impacto das audiências públicas na deliberação, Revista Direito GV, v. 13, n. 1, p. 236–273, 2017; MARONA, Marjorie Corrêa; ROCHA, Marta Mendes da, Democratizar a jurisdição constitucional? O caso das audiências públicas no Supremo Tribunal Federal, Revista de Sociologia e Política, v. 25, n. 62, p. 131–156, 2017; HERDY, Rachel; LEAL, Fernando; MASSADAS, Júlia R. F., Uma década de audiências públicas no Supremo Tribunal Federal (2007-2017), Revista de Investigações Constitucionais, v. 5, n. 1, p. 331–372, 2018.

7 HERDY; LEAL; MASSADAS, Uma década de audiências públicas no Supremo Tribunal Federal (2007- 2017).

8 Ibid.

9 HERDY, Rachel, Appeals to Expert Opinion in High Courts, in: NOGUEIRA DE BRITO, Miguel et al (Orgs.), The Role of Legal Argumentation and Human Dignity in Constitutional Courts, 1a. ed. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 2019, p. 24.